vi um cara te beijando e ele usava peruca


Belo Horizonte,  5 de março de 2023 

☼ 31° – 18°

Um dia depois do aniversário da Márcia. Aniversário do Pasolini. Em 1936 Luiz Carlos Prestes e Olga Benario são presos e interrogados no Rio de Janeiro pela primeira vez. Em 1887 nascia Villa-Lobos. E em 1966 morria a poeta Anna Akhmatova.


dou de beber
ao passado
e recordo
que doer é finito
e que viver
não passa de
assoprar velas coloridas
de impermanência

Patrícia Pinheiro


Neste dia, em Coimbra, Portugal, há 70 anos, escrevia Miguel Torga em seu diário:

5 de Março de 1953

Chega a dar vontade de rir! Há vinte cinco anos diante deste panorama literário: meia dúzia de sujeitos, sempre os mesmos, a trocarem entre si versos e dardos. Nestes pequenos mundos como o nosso, a cultura perde o seu aspeto universal e concentra-se em siglas só inteligíveis a certos. E esses bem-aventurados sentam-se então às mesas dos cafés ou das revistas, e praticam, muito compenetrados, uma espécie de jogo da bisca em grande estilo, de que o resto dos mortais não percebe patavina. Trunfam, destrunfam, cortam, baralham, dão cartas de novo, e sempre convencidos de que estão a manobrar a glória, quando a partida nem a feijões é! Lembram-me aqueles chineses que vendem gravatas nas feiras e falam incansavelmente uns com os outros numa língua de ratos a chiar. Eles lá dizem, e lá se entendem. .. Mas são ilhas na multidão.

Miguel Torga – Diário VI – Ed. Coimbra


Oráculos da Semana

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Valete de Copas

O Valete de Copas, tão jovem, tão cheio de vida! Com sua capa vermelha e chapéu de aba caída, caminha margeando as águas que seguem seu curso. Seu coração é puro e sincero. Ele está sempre pronto para o amor verdadeiro, seus sentimentos são intensos e profundos. E ele não tem medo de mostrar o que sente. Valete é o sonhador, é aquele que mantem um otimismo inabalável frente à vida. Ele traz notícias significativas, presentes inesperados. Ele é o mensageiro que anuncia a chegada do amor, a chegada de boas novas e descobertas impactantes. Sob a energia desta carta é preciso manter a inocência e um certo grau de entrega. Uma mente de principiante, como dizem os budistas. É preciso manter o espanto da criança diante da vida, diante dos presentes da vida. Esse pajem convida a não endurecer o espírito, a manter a calma e a esperança.

O Valete de Copas significa que coisas boas estão em jogo no momento. É uma carta cheia de energia e entusiasmo. Significa que é um bom período para iniciar novos projetos ou prosseguir com alguma situação que se iniciou recentemente. Também pode anunciar um novo amor, ou uma renovação em um amor já posto. Ou podem ser boas novas na questão principal que ocupa sua mente no momento. Em geral, a carta do Valete de Copas é um convite para se conectar com o coração e permitir que as emoções aflorem. Ela representa a importância do amor e da paixão na vida e nos incentiva a sermos mais abertos e expressivos em relação aos nossos sentimentos e ao nosso cotidiano.

 

No Japão todas coisas são Buda.
Todas as coisas em si mesmas são o real.
A aparência fluida do impermanente é em si mesma o estado absoluto.

Joseph Campbell – Sake & Satori – Diários Asiáticos

Do baralho Follow Your Bliss

Da vida não reclamo
Apenas amo
Apenas agradeço
Aprendo a voar
Faço-me nuvem
e digo à alegria:- Vem.
Vem que eu te mereço

Aluísio Cavalcanti Jr 

Quando combinado com o segundo oráculo que nos vem essa semana, sobre a impermanência, temos diante de nós o aprendizado de que a beleza das pequenas coisas é um dos fatos da vida e sempre vai acontecer, sempre vai se apresentar diante de nós. Essa semana é uma semana em que haverá beleza. Mas também é certo que tudo é um sopro, e por isso precisamos prestar atenção e atender à porta. Agarrar a felicidade pelos cabelos. É preciso lembrar que o único absoluto é a impermanência, mas diante do valete de copas não é preciso se desesperar, pois o que é bom também sempre vem. Não há vida sem beleza, alegria, júbilo ou esperança. Um eterno clichê. Mas não sai de moda.

A tarefa da semana é se dar conta de que as coisas boas virão, apesar de efêmeras. Aproveitemos. O Real é absoluto e efêmero.

Um texto para o Valete de Copas. Todo mundo conhece esse texto, mas é tão bom que vale ler de novo.

Das Vantagens de ser bobo

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando.”

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.
Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: “Até tu, Brutus?”
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.”

Clarice Lispector, do livro “A descoberta do mundo” – Editora Rocco



Para Deslumbrar & Encantar


Filme – Milagre em Milão

“Miracle in Milan” (1951) é um clássico filme italiano dirigido por Vittorio De Sica. O filme conta a história de Toto, um órfão de coração bondoso e inocente que é criado em uma área pobre de Milão. Um dia, Toto descobre uma pomba mágica que lhe dá o poder de conceder desejos. Com esse novo poder, Toto sai em busca de ajudar os pobres e oprimidos em sua comunidade. O filme é uma mistura encantadora de fantasia, humor e comentário social. A direção de De Sica é magistral e ele consegue criar um mundo lúdico e encantador que parece tanto mágico quanto enraizado na realidade. As performances também são notáveis, especialmente a de Francesco Golisano, que interpreta Toto com uma inocência e charme que é difícil de resistir. A performance de Golisano captura perfeitamente a bondade e generosidade do personagem, tornando-o um protagonista adorável. Toto é o próprio Valete de Copas, trazendo sempre uma coisa boa consigo e sempre ancorado na esperança. Acho que é o personagem mais afim com essa carta que já vi. O filme é também uma crítica ao sistema capitalista e sua incapacidade de prover para os pobres e marginalizados. O filme de De Sica é um apelo à compaixão e empatia, argumentando que somente por meio da bondade e generosidade a sociedade pode alcançar verdadeira felicidade e realização. “Milagre em Milão” é um filme encantador e delicioso que consegue ser entretenimento e provocação. Com sua mistura de fantasia e crítica social, o filme é um testemunho do talento de De Sica como diretor e contador de histórias. Qualquer pessoa interessada em cinema clássico ou questões sociais definitivamente deveria conferir este filme. Está disponível no Amazon Prime


Livro – Flores para Algernon

“Flores para Algernon”, escrito por Daniel Keyes, é um romance emocionante e impactante que explora as complexidades da inteligência, da amizade e da natureza humana. O livro conta a história de Charlie Gordon, um homem com deficiência intelectual que se torna o sujeito de um experimento científico destinado a aumentar sua inteligência. À medida que a história avança, Charlie passa por uma transformação notável, deixando para trás a ignorância e a inocência de sua antiga vida para se tornar um gênio. No entanto, a jornada de Charlie é marcada por altos e baixos, e ele enfrenta desafios significativos ao tentar se adaptar a uma vida que se tornou extremamente complexa e solitária. Charlie é um exemplo de Valete de Copas, sua jornada também tem elementos da reflexão sobre a impermanência. A história dele é um conto sobre a efemeridade da felicidade. Do que é ter uma amostra momentânea da felicidade. Keyes habilmente explora temas como preconceito, discriminação e a importância da amizade e do amor em nossas vidas. Através da jornada de Charlie, o autor mostra como a inteligência não é uma panaceia para todos os nossos problemas, e que a verdadeira felicidade e realização só podem ser alcançadas através do amor e da conexão humana.

A narrativa é contada através dos diários que Charlie escreve ao longo de sua transformação, o que nos permite entrar em sua mente e acompanhar seu processo de desenvolvimento intelectual e emocional. A escrita de Keyes é cativante e emocionante, e sua habilidade de capturar a voz e a perspectiva de Charlie é notável. “Flores para Algernon” é um romance inspirador e comovente que oferece uma visão profunda sobre a natureza humana e a importância da empatia e do amor. É uma leitura recomendada pra explorar a força dos dois oráculos da semana. É um livro que explora a complexidade da mente humana e os desafios que enfrentamos ao tentar nos conectar uns com os outros.


Série – Anne with an “E”

“Anne with an E” é uma série de televisão canadense que foi exibida originalmente na CBC Television e na Netflix. A série é baseada no livro clássico “Anne de Green Gables”, de L.M. Montgomery, e segue as aventuras da órfã Anne Shirley (interpretada por Amybeth McNulty) em sua jornada para encontrar uma família amorosa e um lar em Avonlea, uma cidade fictícia da Ilha do Príncipe Eduardo, no Canadá. A personagem principal, Anne, é a personificação do Valete de Copas. Ela é jovem, sonhadora, cheia de boas intenções, adora levar coisas e notícias boas para toda sua aldeia. Cresceu em condições adversas, mas nunca perdeu o otimismo, a fé no amor e em um mundo melhor. A série é reconhecida por sua produção visual impressionante e pelos desempenhos excepcionais do elenco, especialmente de McNulty.

Embora a série aborde temas como amor, amizade, família, identidade e igualdade de gênero, também aborda questões sociais e políticas mais profundas, como racismo, homofobia e exclusão social. A série apresenta personagens bem construídos e diversos, com diferentes origens e identidades, proporcionando uma experiência enriquecedora para o espectador. Nesta semana de Valete de Copas vale à pena assistir pelo menos à primeira temporada da série, pois embora possa ser criticada por alguns aspectos, é uma série emocionante e bem feita.


Música – Uma Outra Canção de Amor – Sueli Costa

Anteontem morreu Sueli Costa. Um compositora magnífica, autora de músicas que estão nas cabeças e histórias de quase todos os brasileiros. Mas que, como muitos artistas neste país ingrato, não foi valorizada.

Deixo aqui uma letra dessa compositora que está muito relacionada aos oráculos desta semana Uma música linda que mostra a doce energia impermanente do amor.

Chuva, chuva/Flama do nosso amor
Me chama meu amor/Me ama, meu amor
Se não eu vou morrer/Meu corpo vai morrer
Minha alma vai morrer/Na chama do nosso amor
Docemente, navega o coração/Sem dizer sim, nem não
Quase mais nada, sente/Logo vai se entregar
Quando chegar ao mar/Parar de pulsar
Calar/E o dócil ser/O jantar dos grandes
Peixes, até quando enfim/Satisfeitos, aos menores irmãos
Me deixem nua/Então todas as pequenas criaturas
Desse mundoBeberam/A chuva
Flama do nosso amor/Me chama meu amado
Me ama, bem amada/Se não eu vou morrer
Meu corpo vai morrer/Minha alma vai morrer
Queimando-se/Na chama do nosso amor
Oh vem, oh vem/Depressa amor
Oh vem, oh vem/Chuva, chuva
Flama do nosso amor


Links

O brasileiro não lida bem com a impermanência

E os EUA não ligam para a impermanência dos seus

 


“Rosto rosado de manhã, ossos brancos de noite.”
Provérbio Japonês

Uma música que parece fofa mas é pura impermanência


Post com colaboração de @laismeralda


Se você leu até aqui, obrigada! Esse é o meu almanaque particular. Um pedaço do meu diário, um registro de pequenas efemérides, de coisas que quero guardar, do tempo, do vento, do céu e do cheiro da chuva. Os Vestígios do Dia, meu dia.

© Nalua – Notas da vida comezinha, nas Colinas de Minas Gerais, no auge do verão e um calorão danado