Belo Horizonte, Véspera de Natal
⛈ 20° – 26°
Um dia depois do solstício. 24 de dezembro é Dia do Órfão e Véspera de Natal. Em 1865 Nos Estados Unidos Jonathan Shank e Barry Ownby formam o grupo terrorista racista Ku Klux Klan. Mil novecentos e quatro anos depois do bebê Jesus chegar ao mundo, enquanto ocupava a Namíbia, a Alemanha declarou as crianças pretas livres da escravidão. Em 1906 foi ao ar a primeira transmissão de rádio, consistindo em uma leitura de poesia, um solo de violino e um discurso. Em 1913 o desastre do Italian Hall em Michigan, resulta na morte de 73 famílias de trabalhadores em uma festa de Natal (incluindo 59 crianças) quando alguém grita falsamente “fogo”. Em 1920 Caruso faz sua última apresentação no Metropolitan Opera in Nova Iorque. Em 1955 Aldous Huxley experimenta LSD pela primeira vez. Em 1970 estreia Os Aristogatas. Em 1837 nasce Sissi, Imperatriz da Áustria. Em 1922 chega a magnífica Ava Gardner, em 1941 vem Ana Maria Machado. Em 1971 nasce Ricky Martin e em 1973 Stephanie Meyer.
Imortalidade
No castelo da Bela Adormecida
o relógio bate cem anos
e a garota na torre volta ao mundo.
O mesmo ocorre com os criados na cozinha,
que nem sequer esfregam os olhos.
A mão direita do cozinheiro, levantada
há exatamente um século,
completa seu arco descendente
até a orelha esquerda do ajudante de cozinha;
as tensas cordas vocais do garoto
libertam finalmente
o sofrido lamento aprisionado,
e a mosca, capturada no meio de um salto
acima da torta de morango,
cumpre sua missão permanente
e mergulha no doce e vermelho esmalte.
Quando criança, eu tinha um livro
com uma gravura dessa cena.
Eu era muito jovem para perceber
como o medo persiste, e como
o ódio que provoca o medo persiste,
que sua trajetória não pode ser alterada
ou rompida, apenas interrompida.
Minha atenção estava na mosca;
no fato de que este corpo leve
com suas asas transparentes
e o tempo de vida de um dia humano
ainda ansiava por sua cota particular
de doçura, um século depois.
❤️
Lisel Mueller
Escreveu Maria Gabriela Llansol em seu diário:
É uma noite estranha, esta que eu não diria assim:
o espírito quebra
o seu invólucro e avança límpido para si.
É uma jovem, vestida de vermelho, que atravessa o ata-lho, chamando o licorne, deitado ao sol, no prado.
Um Cristo despido da sua cruz iconográfica, incrustando flores no lugar de estigmas, vem oferecer uma aliança de ouro ao Buda mudo que contempla o chão.
Uma tão definitiva mudez senta-se no dorso azul do li-corne e absorve o mar.
As flores do Cristo Novo enfeitam a cabeleira alada da jovem, nascida do nada ou das folhas mortas.
O ciclo de Adão acaba aqui. Secou a árvore do Tudo e do Nada.
Podemos voltar ao paraíso: estão cegos os querubins.
Jodoigne, 24 de Dezembro de 1976
Ceamos como eu já tinha descrito: meus convidados invisíveis tinham vindo, desde o cão seguro à serpente.
Cumpriu-se o dia porque, como tanto desejava, fui a Lovaina comprar Florbela; já não estava na montra mas no interior da loja sentada numa cadeira. O dia foi rápido, não houve fadiga. Houve uma grande parte de noite.
Quando já estou deitada ocorrem-me pensamentos. Primeiro, o das estações interiores, das mutações da alma que se desenrolam num quadro interior da natureza; estas estações são ainda menos marcadas, as mudanças são experiências infinitesimais, e requerem uma atenção minuciosa. No entanto, esses detalhes são o fundamento da mudança e revestem a enorme importância de uma espécie de agudização de significado. É verão, é inverno, é retomo, é Outono, é cendrado. Muitas vezes a paisagem mantém-se a mesma; só mudou, então, o lugar da captação da imagem. Porque tenho a certeza de que há dias escrevo com óptica diferente. Descrevo um vislumbre que aparenta claridade diante de mim, dentro de mim fugindo-me da altura dos olhos.
Poderia dar como exemplo:
primeiro que tudo há um plano de árvore, e por detrás dela uma secção de montanha, uma montanha de animal, um cachalote, ou qualquer monstro feroz marinho; não é ainda dia claro, nem lugar intensamente iluminado. A árvore é pequena como um cromo, o monstro é negro, imenso, mas monstro da família, em postura doméstica. Há um palpitar verde, nu de referências, é o nascimento do verde antes de ser conhecido. O verde ainda não está sobre a terra, e pára dentro de si mesmo traz a árvore. A luz que eu via, e o volume que havia, ficam dessituados. No entanto, movem-se num perfeito desequilíbrio de forças. “Um espírito tão desmedidamente espírito que tudo possa absorver, sem nada excluir…
Quando apagar a luz continuarei a sentir, e a pensar.
Mas não poderei escrever, esquecer-me-ei para sempre.
Mas nada se perde, tudo ascende à nuvem sonora pairando.
Maria Gabriela Llansol – Finita – Diário II – Ed. Autêntica
Eu te mostrarei a noiva, a esposa do Cordeiro
“Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice, foi a época da fé, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a estação das trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós.”
Charles Dickens
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Na minha casa, com a minha família estendida, (pai, irmã, sobrinhas), a gente joga muito baralho. Um jogo bem específico, Buraco, mas de uma maneira um pouco diferente, o Buraco de 5000 pontos, com canastra de ases, 100 pontos a mais etc. E tem uma piada interna que a gente faz que é a seguinte: O baralho é muito troll. A gente faz essa piada em ocasiões em que vem exatamente o que a gente espera, em que vem precisamente o que a gente não quer, ou naquelas vezes em que parece acontecer uma intervenção mágica. O baralho é troll.
Mas o tarô também é troll, muito troll. A querida Laís, a minha companheira de tarô me perguntou, tia, e a carta de Natal? Eu falei: ah Laís, eu não queria sortear, estava pensando mais em escolher uma, pensei no Mundo, pensei no Sol, no Julgamento… Aí elenquei questões que me faziam não estar segura de nenhuma delas. Ao que ela muito sabiamente, respondeu: Tia, sorteia uma carta, quem sabe você não se surpreende? Então eu segui o conselho dela e sorteei. E ri muito quando saiu a carta, na mesma hora mandei a foto para ela com a piadinha, o tarô também é muito troll 😊. Saiu a carta O Mundo, em plena véspera de Natal. Dentre todas, justo essa.
Ó tu, eterna consistência daquele que permanece imóvel ainda faz o mundo girar…
O Mundo pode ser visto como o encontro com o Paraíso. O fiel empreendeu toda jornada para chegar em Cristo. Para chegar na Nova Jerusalém, quem sabe voltar ao Éden. O Mundo é uma carta muito adequada ao que o Natal deveria representar, é o aniversário de Cristo. E à parte todo o significado mundano deste arcano, que é a melhor carta do tarô, (e é disso que vocês precisam saber agora) tudo de bom essa carta traz, muitas vezes isso é intraduzível, o melhor não pode ser colocado em palavras. A linguagem nunca deu conta do Real, mas só temos a linguagem… O mundo, diz o anônimo que escreveu o Meditações sobre os 22 Arcanos Maiores do Tarô, é uma obra de arte. O arcano do Mundo e o Mundo em si. Obra de arte, e traz a alegria que decorre da verdade e da sabedoria. O mundo, diz o monge anônimo, é a alegria da coincidência do ritmo próprio de cada um com o ritmo divino, e a alegria é a harmonia do ritmo interior e do ritmo exterior. Em cima como embaixo, harmonia, serenidade, pertencimento, transcendência. O Mundo é alegria de viver. Ananda.
É intraduzível justamente por ser a noção sobre o Éden, o verdadeiro Paraíso individual e pessoal. E ela é uma carta estranha, ainda mais num momento de tão pouca esperança coletiva. Mas ela traz isto, Paraíso.
Talvez o paraíso tenha seu componente de dor? Não tenho como responder isso, cada um sabe a dor e a delícia de seu paraíso pessoal. Desconfio que sim, o meu tem.
O Mundo chega nesta noite de Natal e pede para que você revisite o seu paraíso. Se for possível, pois às vezes o Natal é dolorido demais para saber o paraíso.
Revisite o canto do seu ser que é esse deleite, esse oceano, aquele lugar onde você se conecta com todos os seres, aquele lugar onde a sua espiritualidade floresce e você compreende o que faz aqui, e que tudo e todos estamos interligados, que somos uma rede, uma matéria só, e nem matéria somos.
Essa experiência com a carta do Mundo é uma das mais profundas que se pode ter. O Mundo vem quando você ganha um filho, quando você descobre o Amor com A maiúsculo, quando você realiza um grande sonho, quando você experiencia o sentimento de pertencimento, quando você se sente pleno, seja como for, quando você contempla uma obra de arte. Pense nas melhores experiências da sua vida e é ali que você vai encontrar o Mundo. O conjunto dessas lembranças vai torná-lo mais forte e aí você estará vivendo O Mundo.
Do jeito que puder, através do que for, certifique-se de que você tem esse lugar, mesmo que não possa estar lá agora, hoje. Se não tem esse lugar, ou ainda não o conhece, quem sabe não é agora a hora de construí-lo? Saber que esse lugar d’O Mundo existe pode te salvar, e vai.
Não há quem não tenha um empíreo pessoal, um paraíso para o qual voltar quando tudo demorar em ser tão ruim. Esta é a mensagem da carta do Mundo. A Nova Jerusalém que vem do Apocalipse, e isto é só uma metáfora. O encontro com a divindade que todos temos dentro. A hora mais mística de todas. O Mundo é a chegada ao Paraíso, pura harmonia.
Em certas tradições a a figura central da carta do Mundo passou a ser associada à Anima Mundi, a Alma do Mundo, a força vital que permeia toda a criação. Os ocultistas franceses e britânicos interpretaram o desenho da dançarina do Tarot de Marselha, como uma deusa em movimento perpétuo, gerando a energia que alimenta o cosmos. Esta carta significa o culminar da evolução pessoal, quando se vê toda a realidade sob uma luz espiritual. Nada pode ser mais forte que isso. A Deusa dança também para que tenhamos a experiência cósmica do paraíso. Mas aqui, em vida, não temos garantia do que será quando não formos mais. Então é agora.
Na véspera de uma data que há muito quase não tem mais sentido, encontre seu paraíso, e faça uma festa nele. Se não conseguir, pense nele e guarde para o dia em que puder. Mas tenha em mente que todos temos esse lugar e todos temos capacidade de acessá-lo.
Que o Mundo lhe seja gentil acenda o sonho e seque a mágoa. Boa noite.
![]() A carta de tarô O Mundo é na maior parte dos baralhos, a última carta dos Arcanos Maiores e simboliza a conclusão de um ciclo, a realização, a integração e a plenitude. Ela representa harmonia, totalidade, perfeição, indicando que a pessoa alcançou um estado de equilíbrio e completude em sua vida. No tarô de Rider-Waite, a carta O Mundo mostra uma mulher nua em um mandala, segurando dois bastões em suas mãos. Ela está rodeada por um círculo com os símbolos dos quatro elementos: o touro, o leão, o anjo e a águia. Este círculo representa a totalidade e a união de todos os aspectos da vida. A mulher está dançando em um gesto de celebração, simbolizando a realização de suas metas e alegria pela conclusão de um ciclo. A presença dos quatro símbolos nos cantos da carta representa a integração dos elementos da vida: o físico, o emocional, o mental e o espiritual. Representa também os quatro evangelistas e os quatro naipes. Esta integração é fundamental para alcançar a plenitude e a realização. Além disso, a presença dos bastões nas mãos da mulher simboliza o domínio sobre as forças da natureza e a capacidade de manifestar nossas intenções no mundo material. Esta carta nos lembra que somos co-criadores de nossa realidade e que temos o poder de moldar nosso destino. Quando a carta O Mundo aparece em uma leitura de tarô, ela indica que é hora de colher os frutos do trabalho árduo, celebrar as conquistas e reconhecer o progresso alcançado. Esta carta também sugere que é hora de expandir nossos horizontes, buscar novas experiências e desafios, e integrar novos conhecimentos em nossa vida. No entanto, é importante lembrar que a conclusão de um ciclo não significa o fim de todo o processo. A vida é feita de ciclos contínuos de crescimento, aprendizado e transformação. A carta O Mundo nos lembra que, mesmo quando alcançamos um estado de plenitude, ainda há muito mais para descobrir e explorar. O Mundo representa a realização, a integração e a plenitude. Alcançamos um estado de equilíbrio e completude em nossa vida, celebrando as conquistas e reconhecendo o progresso alcançado. |
Um Texto que afasta O Mundo
Fernando Silva dirige o hospital de crianças, em Manágua. Na véspera do Natal, ficou trabalhando até muito tarde. Os foguetes esposavam e os fogos de artifício começavam a iluminar o céu quando Fernando decidiu ir embora. Em casa, esperavam por ele para festejar.
Fez um último percorrido pelas salas, vendo se tudo ficava em ordem, e estava nessa quando sentiu que passos o seguiam. Passos de algodão: virou e descobriu que um dos doentinhos andava atrás dele. Na penumbra, reconheceu-o. Era um menino que estava sozinho. Fernando reconheceu sua cara marcada pela morte e aqueles olhos que pediam desculpas ou talvez pedissem licença.
Fernando aproximou-se e o menino roçou-o com a mão: — Diga para… — sussurrou o menino —. Diga para alguém que eu estou aqui.
Eduardo Galeano – O livro dos abraços – Ed. L&PM
Soneto de Natal
Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”
❤️
Machado de Assis
Traduzir o mundoEu tenho uma interpretação muito própria do arcano Mundo no meu caminho. E a literatura, o cinema, a música, fazem parte da minha experiência com essa carta de maneira muito orgânica. Por isso, hoje vou falar de obras que fazem parte do meu paraíso, do meu lugar seguro, do meu mundo edênico, do meu latíbulo. Tem tristeza nessas obras, porque eu nunca tive medo de tristeza, e porque sem tristeza não saberíamos o paraíso. Essas coisas que indico agora me transportam para esse lugar mais que feliz, para essa experiência transcendente. Nunca passarei ilesa por elas, meu caráter, minha constituição foram feitos por essas obras. Não é necessário ter moderação. |
Livro
Grande Sertão: Veredas. Guimarães Rosa. Não há um livro mais Mundo que esse. É o melhor livro do mundo, a coisa mais feliz de ser brasileiro é poder ler esse livro no original. Tem tudo ali, tudo, toda história humana pode ser encontrada na história do jagunço Riobaldo. Além do que não existe um livro mais bem escrito. É inesgotável. Ler 5, 10, 15 vezes não esgota esse manancial. Que livro maravilhoso e eu invejo demais quem vai ler essas páginas pela primeira vez. Quando estou lendo o Grande Sertão eu estou segura e tudo está em paz.
Grande Sertão: Veredas é um romance experimental modernista escrito pelo autor brasileiro João Guimarães Rosa e publicado pela Livraria José Olympio Editora, em 1956. Tanto a arte da capa como as ilustrações da primeira edição de Grande sertão: veredas são de autoria de Poty Lazzarotto. Pensado inicialmente como uma das novelas do livro Corpo de Baile, lançado nesse mesmo ano de 1956, cresceu, ganhou autonomia e tornou-se um dos mais importantes livros da literatura brasileira e da literatura lusófona. A grandiosidade de Grande Sertão: Veredas pode ser exemplificada pelas interpretações, que a abordam sob os mais variados pontos de vista, sem jamais deixar de ressaltar a capacidade e a confiança do autor ao ser inventivo. Extremamente erudito, Rosa incorporou em sua obra aspectos das mais diferentes culturas. Disse uma vez que “para estas duas vidas [viver e escrever], um léxico só não é suficiente”.Segundo Alexei Bueno, é uma das três epopeias da língua portuguesa, as outras sendo Os Lusíadas e Os Sertões.
Livro
Memórias do Subsolo – Fiódor Dostoiévski. Esse é outro livro que tem toda experiência humana dentro. É um dos livros que me faz ter uma experiência transcendente, que me tira do banal, do ordinário. Talvez minha associação com O Mundo tenha a ver com uma época feliz da vida em que eu li. Uma época em que meu cérebro ainda estava em formação e ele aterrisou como uma pequena explosão ligando váriás chaves mentais e emocionais na minha vida. Tem tudo aí nesse livro tão curto quanto denso.
Notas do Subterrâneo (BR) (também traduzido como Memórias do Subsolo ou Notas do Subsolo) ou Cadernos do Subterrâneo (PT) (em russo pré-reforma ortográfica: Записки изъ подполья e pós-reforma ortográfica: Записки из подполья, com transliteração: Zapíski iz pódpol’ia) é um curto romance de Fiódor Dostoiévski, publicado em 1864.
Para Walter Kaufmann, esta obra faz de Dostoiévski o principal precursor do existencialismo. Apresenta-se como um excerto das memórias de um empregado civil aposentado que vive em São Petersburgo. O livro, com cerca de 150 páginas (a depender da edição) é dividido em duas partes, a primeira intitulada “O Subterrâneo”, contém 11 capítulos, e a segunda parte “A Propósito da Neve Derretida”, possui 10 capítulos. O personagem anônimo (chamado geralmente de Homem subterrâneo) é caracterizado como um homem amargo e isolado. O mesmo encena na primeira parte do romance um grande monólogo com a intenção de “comover” de alguma forma seu leitor. A autopercepção do leitor das Notas é descrita pelo autor como de suma importância no exercício da leitura, pois o discurso do narrador é “moldado” por seu receptor, dessa forma o seu monólogo é, na verdade, uma evocação sistemática de discursos alheios que são parodiados de forma zombeteira e crítica. O personagem chega a dizer que é um homem mau, ou age como tal, mas que pode ser agradado e visto como uma pessoa de bem. Essa incapacidade de se livrar do peso moral o aflige, ao que o mesmo diz que os homens sanguinários eram cultos e inteligentes (reforçando as ideias de Raskolnikov em Crime e Castigo), e que ele mesmo gostaria muito de encontrar um motivo para dar sentido a sua vida, como os chamados “homens de ação”. Ele conclui que “o melhor é não fazer nada”.
Na segunda parte, nomeada de “A propósito da neve molhada”, há três episódios que relatam de uma forma concreta como o anti-herói é encurralado socialmente pelos discursos e ações de uma sociedade. Essa narrativa é exposta sistematicamente com uma visão da consciência do protagonista, num dos melhores exemplos do recurso literário fluxo de consciência.
Filme
Asas do Desejo – Wim Wenders – 1987 – Eu penso nesse filme e só experiencio beleza. Só lembro da experiência visceral que tive com ele, que foi visto numa época em que tudo era possível e eu estava viva, muito viva. Ele é parte do meu arsenal de felicidade, que utilizo quando as coisas vão mal ou quando quero ser mais feliz do que sou.
Der Himmel über Berlin (bra: Asas do Desejo) é um filme franco-alemão ocidental de 1987, do gênero drama romântico-fantástico, dirigido por Wim Wenders, com roteiro de Peter Handke, Richard Reitinger e do próprio diretor.Sua poética é inspirada em Rainer Maria Rilke. Na gélida e devastada Berlim ainda separada pelo Muro de Berlim, um batalhão de anjos, entre eles os anjos Damiel e Cassiel, vela pelas almas perdidas que sofrem e se desesperam em silêncio. Eles assistem às desventuras terrenas, mas não podem sentir as dores e alegrias humanas. Damiel não escapa incólume de sua condição divina, ao se apaixonar pela trapezista Marion e não poder consumar seu desejo. Para poder tocá-la, ele deve deixar de ser anjo e tornar-se humano, perdendo sua condição imortal. Para guiá-lo em sua escolha, surge um anjo caído que soube fazer a transição entre os dois mundos.
Série
Dark – 2017 -2020. Baran bo Odar – Jantje Friese. A série que me tocou num lugar bem sensível. A série que mais me tocou. Uma produção intrigante, bonita, meio inesperada. Que me dá alegria de saber que mesmo velha, ainda posso ser surpreendida com beleza e transcendência. Amo essa série, e não importa tanto entender, pode ser experimentada sem tanto entendimento ou tanto apelo ao racional assim.
Dark (estilizado como D A R K ou D A Я K) é uma aclamada e premiada série alemã de drama, suspense e ficção científica criada por Baran bo Odar e Jantje Friese e eleita em votação popular no site Rotten Tomatoes como a melhor série original Netflix. A trama da série se passa na fictícia cidade alemã de Winden, quando quatro famílias iniciam uma busca desesperada por respostas após o desaparecimento de duas crianças que aparenta estar relacionado a um outro desaparecimento ocorrido 33 anos antes. Aos poucos, segredos familiares e um complexo mistério envolvendo três gerações começa a se revelar. Ao longo da série, Dark explora as implicações existenciais do tempo e seus efeitos sobre a natureza humana.
Filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos – Marcelo Masagão – 1999. Talvez o filme que mais me emocionou até hoje. Talvez o filme em que eu tenha tido as experiências mais fortes com esse tipo de arte . Nenhum filme ressoou tanto em mim, por tantos dias, meses e anos como este. É claro que teve o impacto da época, era inovador. Mas ainda assim, eu já revi por agora e continua me emocionando e me deixando muito feliz. Páreo para tanta emoção foi apenas o documentário Sal da Terra, sobre o Sebastião Salgado, do Wim Wenders.
Masagão traz o filme como memórias do século XX. O filme retrata de uma verdadeira volta ao mundo no seu contexto histórico, econômico e cultural. Banaliza a vida e a morte para nos fazer refletir sobre ela. Inspirado na leitura cinematográfica da obra Era dos Extremos, do historiador britânico Eric Hobsbawm, mostra na produção, através da montagem das imagens produzidas no século XX e da música composta por Wim Mertens, o período de contrastes entre um mundo que se envolve em dois grandes conflitos internacionais, a banalização da violência, o desenvolvimento tecnológico, a esperança e a loucura das pessoas. O filme usa imagens de arquivo de filmes clássicos (Tchelovek s kinoapparatom, Un Chien Andalou, The General, Le Voyage dans la Lune, Berlin: Die Sinfonie der Großstadt), fotos, pinturas, textos, nos quais o autor viajou a Nova Iorque para conseguir imagens que ligassem fatos acontecidos, e histórias de pessoas normais com toda a revolução e acontecimentos históricos do tempo em que elas emergiram. O filme é considerado um documentário ficcional, segundo o diretor um “filme-memória”, com imagens reais e textos criados por Masagão.
Música
Matita Perê – Tom Jobim, essa música também me transporta pra lugares inesperados e estranhos e felizes.
Darpa – Win Mertens. Não tenho palavras
♫ Playlist
Matita Perê – Tom Jobim
Darpa – Wim Mertens
My Way – Nina Simone
It’s a long way – Caetano Veloso
Canto das 3 Raças – Clara Nunes
If You believe – Strive to Be
Clube da Esquina nº2 – Milton Nascimento
Bachianas brasileiras 5 – Aria (Cantilena) – Villa Lobos
Cruzeiro do Sul – Renato Braz
Jesus Alegria dos Homens – Bach
Struggle for pleasure – Wim Mertens
Raminho – Baiana System
Concerto para piano No. 21, K. 467 – Mozart
Ária da Quarta Corda – Bach
Terra – Caetano Veloso
Divã – Roberto Carlos
Boas Festas – Assis Valente
Rolando Boldrin – Crônica do Natal Caipira
Onde uma Nova Terra áurea receba
Lágrimas, já diversas, de alegria,
E em Outro Sol nosso olhar outro beba
Um Novo e Eterno Dia;
Onde o Áspide e o Pomba de nossa alma
Se casem, e com a Alma Exterior
Numa unidade dupla — sua e calma —
Nossa alma viva, e à flor
De nós nosso íntimo sentir decorra
Em outra Cousa que não Duração,
E nada canse porque viva ou morra —
Acalmaremos então?
Não: uma outra ânsia, a de infelicidade,
Tocar-nos-á como uma brisa que erra,
E subirá em nós a saudade
Da imperfeição da Terra.
♦️
Fernando Pessoa
Post com a colaboração de @laismeralda, que é a melhor cartomante do pedaço, marque sua consulta com ela.
O único transformador, o único alquimista que muda tudo em ouro, é o amor. O único antídoto contra a morte, a idade, a vida vulgar, é o amor. Anaïs Nin |
Esta é a 39ª de 78 páginas que terá este almanaque.