Mês: fevereiro 2025

como vou viver sem meu carango

Belo Horizonte, 09 de fevereiro de 2025

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09 de Fevereiro é Dia do Frevo em Pernambuco. Em 1964 aconteceu a primeira aparição dos Beatles ao vivo, dando início a Beatlemania.  Em 1986 o Cometa Halley apareceu. Em 2021 começou o segundo julgamento de impeachment da Desgraça Laranja. Em 09 de fevereiro nasceram Carolina Nabuco, Carmen Miranda, André Gorz, Thomas Bernhard, J. M. Coetzee, Carole King, Alice Walker e Mia Farrow.


A um Estranho

Estranho que passa! você não sabe com quanta saudade eu lhe olho,
Você deve ser aquele a quem procuro, ou aquela a quem procuro, (isso me vem, como em um sonho,)
Vivi com certeza uma vida alegre com você em algum lugar,
Tudo é relembrado neste relance, fluído, afeiçoado, casto, maduro,
Você cresceu comigo, foi um menino comigo, ou uma menina comigo,
Eu comi com você e dormi com você – seu corpo se tornou não apenas seu, nem deixou o meu corpo somente meu,
Você me deu o prazer de seus olhos, rosto, carne, enquanto passamos – você tomou de minha barba, peito, mãos, em retorno,
Eu não devo falar com você – devo pensar em você quando sentar-me sozinho, ou acordar sozinho à noite,
Eu devo esperar – não duvido que lhe reencontrarei,
Eu devo garantir que não irei lhe perder.

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Walt Whitman



Em 9 de fevereiro de 1924 Virginia Woolf escreveu em seu diário a seguinte entrada:

Portanto, nossos sentimentos em relação aos nossos amigos mudam. Corte-me em qualquer lugar, e eu sangro muito profusamente. A vida criou muita “sensação” de algum tipo em mim. Então (estou tão cansada com pacotes etc. que não consigo me concentrar), Marjorie pôs brincos nas orelhas e abandonou Joad. Pobre fedelha! Tem 24 anos. Eu estava em Fitzroy naquela época, e também infeliz como um diabo. Ela encontrou uma carta, abandonou a casa – mora num porão. É um melodrama, mas foi forçada a ele por Cyril, presumo. Eu estou trabalhando n’As horas, e o considero uma tentativa muito interessante; posso ter encontrado minha mina desta vez, eu acho. Posso retirar dela todo o meu ouro. A grande coisa é nunca se sentir entediada com a sua própria escrita. Esse é o sinal para uma mudança – não importa qual, contanto que traga interesse. E o meu veio de ouro está nas profundezas, em canais muito tortos. Para apanhá-lo devo abrir caminho com um martelo, me inclinar e tatear.

Virginia Woolf – Os Diários de Virginia Woolf – Uma Seleção 1897 – 1941 – Ed. Rocco


Em 9 de fevereiro de 1943 foi a vez de Miguel Torga registrar:

Três passos, e cuidei que tinha atravessado o Marão. Sensação estranha, esta de recomeçar a vida! O covarde do corpo hesita entre o decúbito cómodo da sepultura e a verticalidade dolorosa de existir.

Miguel Torga – Diário II – Ed. Coimbra


Quem confia em si mesmo é um tolo

Provérbios 28:26

Nestes tempo tem sido difícil fazer esse almanaque. Não porque faltem referências, porque as cartas não tenham nada a dizer, porque falte vontade. Parece que a cada dia o entorno vai se tornando mais opressor, mais nebuloso e cinza, e que qualquer tentativa de escape seja vã, ou fútil, ou desavisada. O que estamos vivendo é algo muito sério, estamos vendo a ascensão de algo muito podre, muito danoso e seremos todos vítimas do que vem por aí. Assim, como escrever sobre cartas de tarô quando a perspectiva é de ver ao vivo o extermínio de um povo, de uma classe de pessoas, do mundo como o conhecíamos e que tínhamos no imaginário? E é justamente por causa disso que eu tento me agarrar ao que em mim organizam as cartas. Para além de qualquer dimensão sobrenatural, na qual não eu não acredito, apesar da jovem mística que fui e da velha quase mística que sou, as cartas são instrumentos que ajudam a organizar a nossa vida interior. Elas servem, entre outras coisa para arranjar a narrativa da vida, para nos dar um senso provisório de coerência, sem que isso necessariamente implique em sobrenaturalidade (risos).

Bastante desolada com todo esse clima no mundo, preocupada como sempre sou, estava pensando na Inês um dia destes e vi meu pai, um senhor de 86 anos e muitíssima vida atrás de si sentado placidamente lendo um livro clássico da literatura russa, completamente envolvido na leitura daquele volume, alheio a todo barulho e caos que se faziam ao seu redor, por horas e horas. Imediatamente eu me lembrei de uma noite muito insone em que olhei para minha pequena recém-nascida que dormia na mesma placidez, apenas existindo e pensei que aquilo poderia ser, caso eu alcançasse, a cura para insônia atroz que me visita sempre. Que estar em si, daquela maneira tão inteira e despreocupada era o núcleo da vida. Que para viver era preciso não viver por alguns momentos. Estar tão imerso em algo ou tão completamente absorvido na própria existência sem consciência que o sentido se apresenta de per si.

E com estas duas imagens em mente eu fui transportada quase sobrenaturalmente (ha ha ha) para a carta da semana, que estava ali e eu não encontrava palavras para escrever sobre ela.

É a carta O Carro. Esse arcanos que tradicionalmente representa a vitória sobre si, mas que é o meio que nos dirige ao pleno espaço/tempo de nós mesmos. É claro que estar em si, que vestir a própria pele com conforto, aproveitar o momento, tudo isso tem a ver com esse estar em si. Mas é um pouco mais, e os olhos podem não conseguir perceber de imediato. Essa faceta do carro se apresenta naquele momento em que toda insegurança acaba, em que estamos de tal forma à vontade na vida que não é preciso nada mais. E não é um movimento deliberado, como nas práticas de mindfulness, ou das práticas de estar presente no agora. É mais que isso. É o momento em que o Carro nos entregou ao nosso destino, ao que viemos fazer neste mundo. E o que viemos fazer é simplesmente estar em nós mesmos, nada mais é necessário. Inclusive para conseguir sair dessa roda viva é o Carro que nos vai  levar para onde nasce o Sol. É essa carta que inaugura as jornadas, e inaugura o ser em nós.

Estar em si mesmo é mais que um estado passageiro ou egoísta; é uma prática de habitar o próprio ser, como quem encontra refúgio em um lugar sagrado. É um movimento interno de retorno ao que é essencial, onde a voz do mundo exterior fica mais baixa e os ruídos externos diminuem, deixando paisagens íntimas a serem exploradas. Nesse espaço a vida ganha novas camadas, uma conexão autêntica com quem se é. É como desembaraçar os fios de uma tapeçaria: pensamento, memória, sonho e ferida compõem um padrão que só faz sentido observado de dentro. É o momento em que  surge a coragem de viver a partir de uma verdade pessoal, mesmo que imperfeita.

É um perigo fazer dessa carta um passaporte para um modo de viver egoísta e autocentrado. Só seremos plenos e teremos um lugar sabendo que tudo está conectado. Que todos os seres sejam felizes, este é o objetivo. E quando aterrissamos, mesmo que por uma fração de segundo, o mundo volta ao lugar. Chegamos em nós para percebermos o todo, os outros, o Outro, o diverso. Sem isso não estamos.

Se você recebeu esse presente do carro, você será sim, nesta semana, um ser privilegiado.

Boa semana, dirijam com segurança e cheguem bem.

O Carro

A carta de tarô O Carro simboliza movimento, progresso e controle. Representa a capacidade de avançar em direção aos objetivos com determinação e nos lembra que somos os condutores de nossas próprias vidas, e que temos o poder de sonhar em direcionar nosso destino. A vitória sobre si mesmo é um dos maiores triunfos que podemos alcançar. Significa encontrar a força e a coragem necessárias para seguir em frente, mesmo quando as circunstâncias parecem desfavoráveis. É um processo que nos permite alcançar um estado de equilíbrio e harmonia interior. Quando combinamos a energia da carta O Carro com a vitória sobre si mesmo, obtemos uma poderosa mensagem de superação e realização. Lembre-se sempre do poder que você tem dentro de si para conduzir sua própria jornada e alcançar suas metas. Tenha coragem para enfrentar seus medos e dúvidas, e saiba que a verdadeira vitória começa quando você volta para o seu lugar.

Um Texto Carruagem

Epistola in carcere et vinculis Reading

Prisão de Sua Majestade

Caro Bosie,

Tenho muito mais pela frente. Tenho montanhas muito mais íngremes a escalar, vales muito mais escuros a atravessar. E tenho de extrair tudo de mim. Nem a Religião, a Moral ou a Razão poderão servir-me de ajuda.

A Moral não me ajuda. Nasci antinómico; sou um dos que foram feitos para as excepções e não para as leis. Mas se percebo que não há nada de errado naquilo que fazemos, vejo também que pode haver naquilo em que nos tornamos. E é bom ter aprendido isto.

A Religião não me ajuda. A fé que os outros depositam no que não vêem, eu deposito no que pode ser tocado e observado. Os meus deuses habitam templos feitos com mãos, e o meu credo torna-se perfeito e completo no círculo da experiência real; talvez demasiado completo, pois como muitos ou todos os que situaram o seu Céu neste mundo, eu encontrei nele não apenas a beleza dos Céus, mas também os horrores do Inferno. Quando sucede pensar em religião, sinto que gostaria de fundar uma ordem para aqueles que não acreditam: a Confraria dos Sem-Pai, como poderia ser chamada, onde num altar onde nenhum círio ardesse, um sacerdote em cujo coração nenhuma paz encontrasse morada pudesse celebrar com pão não consagrado e um cálice vazio de vinho. Para ser verdadeira, uma coisa tem de se tornar uma religião. E o agnosticismo, como a fé, deveria ter o seu ritual. Semeou os seus mártires, deveria colher os seus santos, e louvar Deus diariamente por se ter ocultado ao homem. Mas seja fé ou agnosticismo, não pode ser nada exterior a mim. Os seus símbolos devem ser de minha lavra. Só é espiritual o que cria a sua própria forma. E se não for capaz de encontrar o seu segredo em mim mesmo, então nunca o encontrarei. Se não o possuir já, então nunca virá a mim.

A Razão não me ajuda. Diz-me que as leis pelas quais fui condenado são erradas e injustas, e que o sistema no qual sofri é errado e injusto. Mas de alguma forma tenho de tornar ambas as coisas justas e certas para mim. E exactamente como na arte só nos preocupa o que uma determinada coisa é para nós num determinado momento, assim é na evolução ética do nosso carácter. Tenho de tornar bom para mim tudo o que me aconteceu. […]

Quero chegar ao ponto em que serei capaz de dizer, com simplicidade e sem afectação, que os dois grandes pontos de viragem da minha vida foram quando o meu pai me mandou para Oxford e a sociedade para a prisão. Não direi que a prisão é a melhor coisa que poderia ter-me acontecido, pois essa frase teria um travo de excessivo azedume em relação a mim. Preferiria dizer, ou que de mim fosse dito, que fui tão tipicamente um filho do meu tempo que na minha perversidade, e por causa dela, transformei as coisas boas da minha vida em coisas más e as más em boas. Contudo, aquilo que por mim ou por outros é dito importa pouco. O que importa, o que se ergue no meus caminhos, o que tenho de fazer se não quiser permanecer, no que ainda resta dos meus dias, corrompido, desfigurado, e incompleto, é absorver na minha natureza tudo o que me fizeram, torná-lo parte de mim, aceitá-lo sem queixumes, medo ou relutância. A superficialidade é o supremo vício. Tudo aquilo de que tomamos consciência é bom.

Assim que fui preso, algumas pessoas aconselharam-me a tentar esquecer quem era. Eram um conselho desastroso. Só apercebendo-me do que sou pude encontrar alguma espécie de conforto. Agora outras aconselham-me, quando for libertado, a esquecer que estive na prisão. Sei que isso seria igualmente fatal. Significaria que eu seria perpetuamente atormentado por uma sensação intolerável de desgraça, e aquelas coisas a que tenho tanto direito como qualquer outra pessoa – a beleza do sol e da lua, o cortejo das estações, a melodia da aurora e o silêncio das grandes noites, a chuva a cair por entre as folhas, ou a geada a deslizar pela relva, tornando-a prateada – tudo isso estaria manchado, e perderia o seu poder curativo e o seu poder de comunicar alegria. Lamentar as nossas experiências é travar o nosso desenvolvimento; é transformar a nossa própria vida numa mentira. E é também uma negação da alma.

Oscar Wilde – De Profundis

Transporte do Ser

O carro que nos leva para esse lugar dentro de si pode muito bem ser a arte, como sempre.

Livro

Christine –  Stephen King. Esse foi o único livro que me fez sentir medo numa leitura, até hoje. Indico porque é uma diversão muito boa pra quem curte o gênero, e porque a despeito de tudo, o Rei Estevão é um contador de histórias muito competente. Tem o filme também, mas não me marcou tanto quanto o livro.


Christine é um romance de horror estadunidense com toques de suspense, escrito por Stephen King e publicado em 1983. Conta a história de um carro – um Plymouth Fury 1958 chamado Christine – que, aparentemente, possui vida própria.


Filme

Conduzindo Miss Daisy – 1993 – Bruce Beresford. Um carro que leva dois personagens a um lugar distinto do que tinham ao se conhecerem, Um dos filmes que marcaram minha juventude, e que na época me pareceu bonito, delicado, bem interpretado. Adorei. E  o tema tem muito a ver com a carta da semana. É um filme que vale à pena demais.


No sul dos Estados Unidos, senhora judia de 72 anos reluta em contratar um motorista negro mas, com o passar dos anos e a convivência diária, eles se tornam grandes amigos.


Série

O Poder e a Lei. 2022. Essa vai porque o carro leva o personagem principal em sua redescoberta pela vida, em uma segunda chance. É uma série divertida, gostosinha de ver, serve pra dar aquela fritadinha básica no cérebro enquanto descansamos.


O famoso advogado Mickey Haller assume os casos mais polêmicos e complicados da cidade de Los Angeles. Mas sua ambição e seus clientes o levam a tramas perigosas e conspirações.


♫ Playlist

Drive My Car – Beatles
Roberto Carlos – O Calhambeque
Pelados em Santos – Mamonas Assassinas
Fuscão Preto – Trio Parada Dura
Mercedes-Benz – Janis Joplin
Born To Be Wild – Steppenwolf
Ouro de Tolo – Raul Seixas
O Bom – Erasmo Carlos
The Clash – Brand New Cadillac
Kraftwerk – Autobahn
Vital e sua moto – Paralamas do Sucesso
Rua Augusta – Ronnie Cord


Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?
Quantos Césares fui!
Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!
Quantos Césares fui!

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Álvaro de Campos

Post com a colaboração de @laismeralda, que é a melhor cartomante do pedaço, marque sua consulta com ela.


Se você leu até aqui, obrigada! Esse é o meu almanaque particular. Um pedaço do meu diário, da minha arca da velha, um registro de pequenas efemérides, de coisas que quero guardar, do tempo, do vento, do céu e do cheiro da chuva. Os Vestígios do Dia, meus dias. Aqui só tem referências, pois é disso que sou feita.

© Nalua – Caderninho pessoal, bauzinho de trapos coloridos, nos morros de Minas Gerais. Ainda chove, não graças a nós.

9 de fevereiro é o 40.º dia do ano no calendário gregoriano. Faltam 325 dias para acabar o ano (326 em anos bissextos).