só quero ser sombra na rua

Belo Horizonte 3 de dezembro de 2023

🌧21° – 29°


3 de dezembro é Dia internacional das pessoas com deficiência. Em 1910 a iluminação neon foi ligada pela primeira vez no Salão do Automóvel de Paris. Em 1967 o Doutor Christian Barnard realizou o primeiro transplante de coração na África do Sul. Em 1979, infelizmente o aiatolá Khomeini se tornou o primeiro líder supremo do Irã e levou o país para um atraso inacreditável, que dura até hoje. Eles passam, viu? Em 1984 acontece o horrível Desastre de Bhopal: um vazamento de isocianato de metila de uma fábrica da Union Carbide em Bhopal, na Índia, matou mais de 3.800 pessoas e feriu entre 150  a 600 mil outras. Em 1857 nasceu Joseph Conrad, em 1911 chegou Nino Rota e sua música encantadora. Em 1948 veio Ozzy Osbourne. Em 1919 partiu Renoir e em 2009 tristemente nos deixou Leila Lopes.



O tédio sempre me aborda num domingo a tarde, numa festa de réveillon ou Show do SESC Pompeia.
Ele parece pacífico, de bons modos, mas age impulsivamente.
O tédio nada paralisa. Com ele, tudo se movimenta.
Por ele existem as camas redondas, o Kama Sutra, o psicanalista e o guaraná com formicida.
Vem uma vontade desenfreada de viver aventuras inéditas, passeios gelados no Ártico, escalar Everestes, noitadas opiáceas em Pequim, festas de drag-queens!…
Não, não. Nunca leve o tédio a Sério. Nunca!
Mas vale o lembrete de Nelson Rodrigues: “só o imbecil não tem tédio”. 

❤️

Sérgio Lara


Em algum momento de algum ano entre 1916 e 1918, escreveu Fernando Pessoa em seu Diário:

Nos mais ___ momentos do meu tédio, quando mais completamente me cinge a angústia do momento actual assalta-me o desejo violento de me desejar em outras vidas, vivendo outras almas, outras sensações.
Ora me sonhava dormir ___ num leito de província, em Janeiro, sentindo cair lá fora a chuva, muita chuva, enquanto eu me sentia bem, conservado num gasalho idiota de alma e corpo.  ___ em toda parte o desterro da sensação sempre intelectualizada da conciência de tudo que ___
E mesmo nesses sonhos, como depois de os sonhar[,] me acompanha uma saudade deles, uma saudade ácida, acre, árida e dolorosa a um ponto que não [se] imagina. Dói-me a alma para além do tédio doloroso durante e no regresso dessa viagem de sonho,  ___ Sinto como se tivesse atravessado o mistério da vida na sua íntima essência e permaneço no mesmo tédio, mais gélido, mais profunda e gelidamente cansado.

Fernando Pessoa – Escritos Autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal – Ed. A Girafa

A minha alma tem tédio de minha vida; darei livre curso à minha queixa, falarei na amargura da minha alma.

Jó 10:1

Esses dias em que horas dizem nada

Todos os adultos se lembram, entre muitas outras coisas, do grande tédio da infância, e a vida de toda criança é pontuada por períodos de tédio: aquele estado de expectativa suspensa em que as coisas são iniciadas e nada começa, um sentimento de inquietação difusa que contém a vontade mais absurda e paradoxal de todas, o desejo de um desejo.

Adam Philips

Hoje apareceu o 4 de copas, bem inusitado. O que faz a carta do tédio e da apatia aqui, bem no começo de dezembro? Quem é que tem tempo e condições de sentir tédio a essa altura do campeonato? Mas é o que o oráculo tem para nós neste domingo. Precisamos aguçar os ouvidos para escutar o que diz orago, precisamos afiar a intuição e a sensibilidade para entender o que o tarô quer de nós com essa carta. Não passamos 2 anos de pandemia loucamente entediados, confinados à nossa própria companhia? O que mais, em nome de Zeus, precisamos aprender de lição do tédio?

Precisamos aprender muito, muitíssimo. O tédio é causa de coisas contraditórias. Ele é tido ora como o pai de todos os males, ora como mãe de toda criação.

Atualmente organizamos a sociedade e a vida digital de maneira que quase não existe mais espaço para o tédio. É uma promessa do nosso zeitgeist, nunca mais estaremos entediados, pois a distração das redes e da internet nos livrará eternamente desse sentimento estranho. Acontece que essa promessa não está sendo cumprida, nunca será. Ser humano é sentir tédio, mesmo que reduzido ao mínimo indispensável. É sempre, vem amor que a hora é essa

O tédio é necessário, é vital e inevitável. Alguns pensadores dizem que sem tédio e sem medo não teríamos civilização. E talvez não tivéssemos sobrevivido, foi o tédio que proporcionou a exploração do mundo, se pensarmos bem.

Talvez a lição do 4 de copas em pleno início de dezembro seja para que não nos afundemos em distrações demasiadas. E para que reservemos um tempo de tédio que permita à nossa mente se recuperar de tanta distração e futilidade. Talvez o 4 de copas nos convide à contemplação, e nos permita entrar em contato com um fluxo da vida que ocorre  independente de acontecimentos. Não é necessário que tudo seja um espetáculo o tempo todo, ainda mais em dezembro, o mais espetaculoso dos meses. Podemos parar e simplesmente ouvir o que nossa mente está dizendo. Não precisamos ser eternamente entretidos, nem as crianças precisam estar ocupadas o tempo todo. A companhia da nossa mente às vezes pode ser difícil de suportar. Mas para onde vamos, nós nos levamos, talvez seja isso, estar bem com a própria companhia e com os dons gratuitos que às vezes nos são dados, inclusive com o tédio. O tédio é um dom do tempo, e só tem tempo quem está vivo.

A magnífica Susan Sontag tem uma palavrinha sobre isso em seus diários:

As pessoas dizem “é entediante” — como se isso fosse um padrão final de argumentação e nenhuma obra de arte tivesse o direito de nos causar tédio.
Mas a maior parte da arte interessante de nosso tempo é entediante. Jasper Johns é entediante. Beckett é entediante, Robbe-Grillet é entediante. Etc. etc.
Talvez a arte tenha de ser entediante agora. (O que obviamente não significa que arte entediante seja necessariamente boa — é óbvio.)
Não devemos mais esperar que a arte entretenha ou divirta. Pelo menos, não a alta arte.
O tédio é uma função da atenção. Estamos aprendendo novos modos de atenção — digamos, favorecer mais o ouvido do que o olho — mas enquanto trabalharmos no antigo modo de atenção acharemos X entediante… por exemplo, ouvir antes pelo sentido do que pelo som (ser orientado demais para a mensagem). Possivelmente após a repetição da mesma única frase ou plano de linguagem ou imagem por um longo período — num determinado texto escrito ou peça musical ou filme, se ficarmos entediados, devemos nos perguntar se estamos operando no modo de atenção correto.

Que tal?

Bocejem, e se puderem, sintam-se vivos a cada banho de chuva que chega. Boa semana.

4 de copas

A carta 4 de Copas representa um momento de introspecção e avaliação das emoções e desejos. Quando essa carta aparece em uma leitura, geralmente indica que a pessoa está passando por um período de apatia emocional. Ela pode estar se sentindo entediada ou insatisfeita com a sua vida atual, e pode estar buscando algo mais significativo ou emocionante. A figura da carta mostra uma pessoa sentada debaixo de uma árvore, olhando para três taças que estão diante dela. No entanto, ela parece não estar interessada nessas copas, e está perdida em seus próprios pensamentos. Isso simboliza a falta de motivação e interesse naquilo que está disponível no momento. A carta 4 de Copas também pode indicar que a pessoa está sendo excessivamente crítica consigo mesma ou com os outros. Ela pode estar se fechando para novas oportunidades ou relações, pois está muito focada em suas próprias insatisfações e descontentamentos.

No entanto, a carta também traz consigo uma mensagem de possibilidade. Ela sugere que, ao invés de se perder em pensamentos negativos, a pessoa pode olhar para dentro de si mesma e buscar a sua própria voz de cura e aconchego, perguntando sobre o que realmente deseja e o que a faz feliz.

É importante não parar demais, o 4 de copas sempre está a meio caminho de uma realização incrível e da depressão, que é a estagnação maior. É mais aconselhável fazer do 4 de copas uma parada estratégica para tomada de fôlego. Ou uma pausa para apreciar o caminho, antes de prosseguir. Este arcano é um convite para se reconectar com as emoções e desejos mais profundos. Ele sugere se abrir para novas experiências e oportunidades, mesmo que elas pareçam diferentes ou desconhecidas.

Essa carta também pode indicar a necessidade de fazer uma pausa e refletir sobre a vida emocional. Pode ser um momento de autoavaliação e análise das próprias emoções e desejos. É um lembrete para buscar a felicidade e satisfação interior.

Um texto para espantar o tédio

Contudo, não ignoro que haja pessoas livres, com saúde, e até interessantes, que às vezes se entediam exatamente quando têm lazer, isto é, quando poderiam, por exemplo, não digo nem viajar, mas simplesmente ler um grande romance, escrever uma carta ou um poema, ou não mais que andar na rua, apreciando a paisagem ou o movimento, ou, quem sabe, a passagem dessa ou daquela promessa de felicidade. Nem ignoro que qualquer uma das atividades que acabo de citar -ou qualquer outra que se imagine- seria capaz de lhes sugerir exatamente o cúmulo do tédio. Por quê? Como é possível ser tediosa a vida de uma pessoa que dispõe do seu tempo?
Creio que a resposta é que o tédio costuma acometer qualquer um que tenha orientado tudo na sua vida por uma única causa final.
A pessoa para quem o tédio se dá desse modo é aquela que tem um interesse obsessivo por uma só coisa. Nesse caso, encarando todas as demais coisas como meros caminhos ou obstáculos para a consecução do seu objetivo, ela as destitui de qualquer interesse intrínseco.
À medida que, em vez de facilitar o avanço dela rumo a esse ponto final, algo possui uma espessura e opacidade própria, à medida que exige atenção para si mesmo, passa a ser um obstáculo. Sendo assim, o tempo que, a contragosto, tal pessoa é obrigada a lhe dedicar, passa a ser um tempo de desvio, tempo que gostaria de ver passar o mais rapidamente possível, abrindo-lhe novamente caminho para a retomada da corrida rumo à finalidade última. Tal é o tempo do tédio, que ela tenta “matar”, como se o tempo não constituísse a própria substância da vida.
O ponto final pode ser, por exemplo, uma paixão devoradora, que atropele tudo o mais. Digamos que uma pessoa vá a uma festa esperando ver o objeto de sua paixão e, lá chegando, não o veja. Então a festa que, não fosse por essa frustração, poderia ser uma delícia, torna-se, para ela, o mais puro tédio. Sem ganhar o objeto da paixão, ela perde o mundo. Eis uma das razões pelas quais tantos filósofos -inclusive Epicuro, que elogiava o prazer- apreciam o amor e a amizade, mas desconfiam da paixão.

Antônio Cícero – Falha de São Paulo

Tudo, menos o tédio, me faz tédio*.

Arte que salva de tudo, que salva da vida, que salva de nós, mas principalmente, nos salva do tédio e da apatia, dos caminhos sem volta.

Livro

O livro do personagem mais entediado de todos. Bartleby o Escrevente, Hermann Melville. Esse livro é magnífico. Surpreendente, mostra o funcionário Bartleby, que num determinado ponto de sua vida decide que prefere não fazer mais. Ao que se segue uma história deliciosa, inquietante, incrível sobre as consequências do não fazer. O 4 de copas aqui assume uma proporção imensa, ultrapassa a si mesmo e vira outras coisas bem mais complicadas e surpreendentes, mas é muito visível que é o 4 de corações que dá início a tudo. Eu considero esse livro indispensável. E é literatura de primeira qualidade. Leiam e tomem a lição de um quatro de copas que não soube a hora de sair de cena. Esse livro tem várias traduções e os nomes variam um pouco. É curtinho, num fôlego ele acaba e deixa uma sensação de que foi pouco.


Um advogado nova-iorquino de meados do século XIX resolve contratar um novo copista. Atendendo ao anúncio do advogado, apresenta-se à porta de seu escritório um jovem que ele caracteriza como uma figura “palidamente asseada, lastimosamente respeitável, incuravelmente desolada”. Era Bartleby. No começo, o novo copista trabalhava fazendo o que se esperava dele: cópias. Mas, depois, bem, depois, não vamos estragar a história. Bartleby, o escrevente é um conto de Herman Melville (1819-1891), o autor de Moby Dick, publicado pela primeira vez em 1853. O personagem central é tão marcante e o conto tem uma força tal que Bartleby tem fascinado leitores e críticos desde sua primeira publicação. Foi, contemporaneamente, teorizado por filósofos tão ilustres quanto Gilles Deleuze, Jacques Derrida, e Giorgio Agamben (v. Bartleby, ou da contingência, Autêntica, 2015).


Filme

Encontros e Desencontros (Lost in Translation)  – Sofia Coppola – 2004. Um filme que eu adoro. E que é sobre apatia, tédio. E incomunicabilidade. É muito gostoso ver como os dois personagens, acometidos terrivelmente pelo 4 de copas, se encontram e começam a compartilhar suas paralisias, seu tédio, e como as coisas vão ficando diferentes e como existe o compartilhar desse tédio, que nem por isso fica menor, talvez fique mais administrável. É um filme ótimo, que marca, que marcou uma época. Se ele é muito referenciado, é merecido.


Bob Harris é um ator de meia-idade que se encontra em Tóquio para realizar sessões fotográficas publicitárias. Está casado, mas o seu matrimónio entrou numa fase aborrecida: Harris sente-se melancólico com toda rotina sem sentido que tornou-se sua vida. No hotel, conhece Charlotte, a jovem esposa de um fotógrafo que se encontra sozinha em Tóquio, pois o seu marido está a trabalhar durante uns dias noutras cidades do Japão. Charlotte também se sente triste, não consegue encontrar algo em que possa se apoiar, algo que lhe dê sentido de viver. Juntos, começam a repartir as horas que não passam. Entre os dois começa a se estabelecer uma relação de compreensão mútua, que se vai afirmando à medida que passam os dias.

O nome original do filme, Lost in Translation (em português, Perdidos na Tradução), refere-se a dificuldade das personagens de serem compreendidas na cidade de Tóquio, mesmo nos momentos em que estão na companhia de tradutores. “Lost in Translation” trata de uma expressão americana que representa a parte cultural de palavras ou frases que se perde quando é traduzida para outra língua. Mesmo que a tradução seja feita correctamente.


Série

Ruptura – 2022 – Ben Stiller. Essa série estranha mostra o tédio que vem da desconexão de si, e da execução de tarefas repetitivas e sem sentido. A série só teve uma temporada, por enquanto, e foi uma excelente temporada, dá pra ver o quatro de copas, que neste caso, pegou os personagens de algum modo, involuntariamente. Mas nem por isso eles estão menos entediados, embora nem saibam disso. Eu estou esperando que a segunda temporada seja tão boa quanto e que feche a narrativa direitinho.


Severance  é uma série de televisão estadunidense, dos gêneros thriller psicológico e ficção científica, criada por Dan Erickson e dirigida por Ben Stiller e Aoife McArdle. Ela é estrelada por Adam Scott, Zach Cherry, Britt Lower, Tramell Tillman, Jen Tullock, Dichen Lachman, Michael Chernus, John Turturro, Christopher Walken e Patricia Arquette. A trama segue a vida de Mark (Scott), um funcionário das Indústrias Lumon que concorda em participar de um programa de “ruptura” no qual suas memórias sem relação com o trabalho são separadas de suas memórias com o trabalho.

A série estreou no serviço de streaming Apple TV+ em 18 de fevereiro de 2022. Desde seu lançamento, o show foi aclamado pela crítica e público, que elogiaram sua fotografia, o design de produção, a trilha sonora, história e performances (especialmente a de Scott). A série recebeu 14 indicações na 74.ª edição dos Prêmios Emmy do Primetime, incluindo a de Melhor Série de Drama e indicações pela atuação de Scott, Turturro, Walken e Arquette. Em abril de 2022, a série foi renovada para uma segunda temporada.



Post com a colaboração de @laismeralda, que é a melhor cartomante do pedaço, marque sua consulta com ela.


3 de dezembro é o 337.º dia do ano no calendário gregoriano (338.º em anos bissextos). Faltam 28 dias para acabar o ano.

Tememos a morte, sim. Mas nenhum medo é maior que aquele que sentimos da vida cheia, da vida vivida a todo peito.
Mia Couto

Se você leu até aqui, obrigada! Esse é o meu almanaque particular. Um pedaço do meu diário, da minha arca da velha, um registro de pequenas efemérides, de coisas que quero guardar, do tempo, do vento, do céu e do cheiro da chuva. Os Vestígios do Dia, meus dias. Aqui só tem referências, pois é disso que sou feita.

© Nalua – Caderninho pessoal, bauzinho de trapos coloridos, nos morros de Minas Gerais. Primavera infernal.

Esta é a 36ª de 78 páginas que terá este almanaque.

*frase de Fernando Pessoa