apenas a matéria vida era tão fina
Belo Horizonte, 03 de novembro de 2024
como comecei a escrever poesia,
eu falo da indiferença da natureza.
Foi logo depois que minha mãe faleceu,
um brilhante dia de junho
no qual tudo florescia.
Sentei-me em um banco de pedra acinzentado
em um jardim carinhosamente cultivado,
mas os lírios eram tão surdos
quanto os bêbados adormecidos
e as rosas encurvadas para dentro.
Nada estava enlutado ou quebrado,
nem uma folha caiu
e o sol ressoava infindos comerciais
de férias de verão.
Sentei-me em um banco de pedra acinzentado
cercado das ingênuas faces
das rosas e das não-me-toques brancas
e depositei minha dor
na boca da linguagem,
a única coisa que sofreria comigo.
No dia 3 de novembro de 1977, alguns dias após a morte de sua mãe, Roland Barthes escreveu em seu diário do luto:
Por um lado, ela me pede tudo, todo o luto, seu absoluto (mas então não é ela, sou eu que a encarrego de me pedir isso). E, por outro lado (sendo então de fato ela mesma), ela me recomenda a leveza, a vida, como se me dissesse ainda: “vá, saia, distraia-se … “
Roland Barthes – Diário de Luto – Ed. Martins Fontes – trad. Leyla Perrone-Moisés
O bom nome é melhor do que um perfume finíssimo, e o dia da morte é melhor do que o dia do nascimento.
Eclesiastes 7:1
O Salário do Pecado
Hoje é domingo, 3 de novembro de 2024. Um dia depois do dia de Finados. E para hoje eu escolhi essa carta. Ela já tinha saído como oráculo num dia em que por motivo diverso eu não pude postar. E como é em geral uma carta assustadora, resolvi deixar para o domingo seguinte ao Dia de Finados. Ou seja, não é uma carta sobre a sorte da semana, não foi realmente sorteada, embora sempre possamos contar com a dimensão mágica do tarô. O que significa dizer que não é a sua “sorte da semana”.
Essa carta é uma das mais famigeradas do tarô, o Nove de Espadas. Para o momento o luto é a reflexão desta carta, embora ela tenha alguns outros significados. É sobre essa condição que existe a reflexão desde ontem, ainda que na dimensão coletiva, social. É o momento para refletir sobre as pessoas que perdemos durante nossa vida.
Todas as culturas ou quase todas, têm rituais para a lembrança e honra dos mortos. Todas as religiões são negociações com nosso medo da morte. Erigimos civilizações inteiras, modos de vida, arte, cultura ciência etc, tudo por causa do nosso medo da morte. E perder alguém nos confronta com a realidade inescapável da Indesejada das Gentes, para além da dor da própria perda.
Perder alguém que amamos é uma das piores experiências da existência, e muito dificilmente alguém chega à idade adulta sem ter perdido ninguém importante. E o luto é essa onda avassaladora que nos atordoa e dita toda nossa experiência quando chega. O luto, como bem disse uma amiga, não é um momento, o luto é uma condição. Que vai acompanhar a nossa restante vida. O luto pode ser destruidor, muitas pessoas não conseguem se recuperar dessa condição. E à parte os preceitos que dizem que o luto nos torna melhores, que é um aprendizado etc., (todos preferiríamos não passar por esse aprendizado) o luto realmente reorganiza o que somos, o que fazemos e o que pensamos.
Uma pessoa amada quando morre, parece enterrar com ela toda história que viveu conosco que ficamos, pensamos que esse pedaço da nossa história seria acabado com o momento em que a outra pessoa finda. Mas como disse Hemingway numa carta belíssima, ninguém que amamos realmente está morto. A história que vivemos está em nós, está conosco. Outra frase muito famosa e muito certeira é a que foi escrita pelo psiquiatra Colin Murray Parkes: O luto é o preço do amor. Se o luto é imenso é porque o amor e a história que temos com aquela pessoa também foi imenso. O sofrimento acontece também por toda a história que não teremos mais com aquela pessoa.
Falo do luto pelas pessoas amadas, mas ele não se limita a isso, sabemos. Existem vários lutos, e todos são dolorosos e nos jogam em outra dimensão, mas o foco em seguida ao Dia de Finados, são as pessoas amadas que se foram. Ou as pessoas que, se não eram amadas, representaram um papel importante na nossa história. E em geral, a nossa própria história fica muito importante no momento do luto, é uma esquina rumo ao desconhecido que é dobrada, entramos no luto e não sabemos como vamos sair. Podemos sair mais fortes ou com uma história melhor. Já dizia Hannah Arend, “Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”. É aí que pode estar uma das viradas do sofrimento atroz do luto, quando entendemos que os mortos vivem em nós e não se acabam enquanto viverem na lembrança de alguém, que há uma história sobre eles e sobre nós. Essa vida na lembrança é uma vida ativa.
O Nove de Espadas, entre outras coisas é essa dor atroz da perda de um ser amado. É nosso confronto com a mortalidade. É o fim de um mundo como conhecíamos. Ele é o lamento sobre nossas perdas. A reflexão de hoje é sobre isso. É sobre saber encontrar dentro de si tudo que foi vivido com a pessoa que se foi. Porque essa história vivida não não morre. As pessoas que amamos estão vivas em nós, sempre. E reconfiguram a nossa história quando se vão, ainda que pareça que o nosso novo estado é um estado quebrado, roto, incompleto.
Muito já foi dito e escrito sobre o luto, o luto realmente é esse abismo, esse toque no que é transcendente, não precisamos nos alongar mais, além de honrar o 9 de espadas e dizer que ele pede uma reflexão sobre os lutos de nossa estrada, é um bom momento para isso.
Existe vida pela frente quando perdemos alguém, ainda precisamos nos reorganizar para seguir em frente. E se o sofrimento é atroz, a história de cada um de nós fica mais rica.
Boa semana, nos vemos em Samarra qualquer dia destes.
![]() A carta de tarô 9 de espadas é frequentemente associada ao luto e à tristeza. Ela representa a angústia, a preocupação e a dor emocional que acompanham a perda de alguém querido. Quando essa carta aparece em uma leitura de tarô, ela sugere que a pessoa está passando por um período de profundo sofrimento e tristeza. A perda de alguém próximo pode desencadear uma série de emoções intensas, como tristeza, raiva, culpa e desespero. O 9 de espadas reflete essa intensidade emocional e a sensação de estar sobrecarregado pela dor. Embora o 9 de espadas represente um momento de profunda tristeza e luto, ele também oferece uma mensagem de prosseguimento. Assim como todas as cartas do tarô, essa carta é um lembrete de que as emoções são inevitáveis e que o sofrimento eventualmente dará lugar à cura. O luto é um processo difícil, mas com o tempo e o apoio adequado, é possível encontrar significado com a sua passagem. Durante esse período desafiador, é fundamental permitir-se sentir todas as emoções que surgem, e lembrar que não há receita nem prescrição, cada luto é um abismo próprio que é preciso enfrentar por si. Nosso alento é que essa não é a carta da semana, a não ser como reflexão. |
Só perdemos o que não temos
Toda nossa arte é uma tentativa de escapar do lutoEu me interesso muito sobre literatura e luto, cinema e luto. Tenho uma lista que está um pouco desatualizada, com cerca de 100 livros sobre luto, livros que li e livros que quero ler. Está aqui. A arte sobre o luto é maravilhosa, talvez porque esse seja o sentimento mais abissal que experimentamos e precisamos saber, e jamais saberemos. |
Livros
De Amor e Trevas – Amós Oz. Trad. Milton Lando. Esse livro está entre os 5 livros que eu mais amo. É a história que amós Oz conta sobre a morte da sua mãe, e conta em paralelo com a história dos judeus na Europa. é a história de uma mãe que se mata e que deixa num filho pequeno uma marca indelével, uma tristeza incomensurável e que faz com que ele leve mais de 70 anos para conseguir falar sobre. É muito bonito, obviamente bem escrito, é Oz. É histórico. E triste. Mas vale demais a leitura, não tenho como recomendar mais.
Entre a autobiografia e o romance, De amor e trevas é a extraordinária recriação dos caminhos percorridos por Israel no século XX. O livro extrai sua grandeza da simplicidade de um gesto narrativo que faz do olhar de um menino o fio condutor de uma história vigorosa e bela da constituição da identidade de um garoto e uma nação. Essa confluência é sintetizada em cenas que marcaram a memória do escritor. Confrontado com o suicídio da mãe aos doze anos, três anos depois Oz declara sua independência e volta as costas para o mundo em que crescera a fim de assumir uma nova identidade num novo lugar: o kibutz Hulda, na fronteira com o mundo árabe.
Sonhei que a neve fervia – Fal Azevedo. É um dos meus preferidos também, e é um livro que fez uma revolução dentro de mim. Eu já li mais de uma vez e toda vez fico igualmente emocionada. Recomendo demais.
“Não deixe que a dor cale suas palavras”, dizia o e-mail que a escritora e tradutora Fal Azevedo recebeu dias após a morte do marido, Alexandre, em agosto de 2007. Mas como continuar depois uma perda como essa? Como acordar, escovar os dentes, trabalhar? A incredulidade, a raiva e a tristeza, e também o relato do amor de uma vida e da solidariedade e carinhos oferecidos por amigos e desconhecidos estão em Sonhei que a neve fervia, novo livro da autora de Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite. E em meio à dor, Fal (re)encontrou sua voz – culta, engraçada, ferina, auto-depreciativa, mas, ao mesmo tempo, brutalmente honesta e transparente. É pela escrita – seja por meio de textos publicados em seu blog, o popular “Drops da Fal”, reflexões, e-mails e mensagens de amigos e seguidores do site – que o leitor acompanha a jornada da autora. Às vezes, impotente diante da impossibilidade de mitigar um sofrimento tão além do que parece ser possível; outras, com um sorriso no rosto e uma gargalhada ao ler um comentário espirituoso. Entre detalhes do cotidiano, como os transtornos causados por um cano furado, e reflexões sobre o luto e a luta, Fal Azevedo deixa um testamento de sua história – a história de um grande amor. Por isso mesmo tão singular, e tão universal.
Filme
A Liberdade é Azul – Krzysztof Kieślowski – 1993. Um dos filmes mais bonitos que você vai ver na sua vida. O meu favorito sobre luto, sobre perda. Lindo, triste, tocante demais. Uma obra prima. Também é dos que estão no meu Olimpo.
Julie perde sua filha e o marido compositor em um trágico acidente de carro. Agora sozinha, ela abandona sua antiga identidade e explora sua nova liberdade. Porém, descobre que está ligada a outros humanos, incluindo a amante do marido, cuja existência ela nunca suspeitou.
Série

“After Life”, a série, parte do ponto cinza em que luto se inicia: sobreviver a uma grande perda. Ao longo de 18 episódios, obedece o vai e vem dos ciclos caóticos do processo, temperados pelo humor ácido, a raiva e o desencanto com a vida do personagem central, Tony, cuja mulher, Lisa, morreu, vítima de um câncer. After Life se desenvolve em torno de Tony, cuja vida é virada de cabeça para baixo depois que sua esposa morre de câncer de mama. Ele contempla o suicídio, mas decide viver o suficiente para punir o mundo pela morte de sua esposa, dizendo e fazendo o que der na telha. Embora ele pense nisso como seu “superpoder”, seu plano é prejudicado quando todos ao seu redor tentam torná-lo uma pessoa melhor
HQ
O Diário do Meu Pai – Jiro Taniguchi. Trad. Drik Sada. Uma HQ delicada e nostálgica. Uma reflexão sobre o luto e o remorso. Uma bonita mensagem sobre o estrago que a incomunicabilidade causa e sobre as consequências do ser tarde demais.
Premiado no Festival de Angoulême e pelo restante da Europa, conheça um dos maiores clássicos de Jiro Taniguchi! Um mangá poético e comovente sobre família, raízes e a necessidade de redescobrirmos nossas próprias memórias. Yoichi Yamashita se distanciou do próprio pai. Absorvido pelo trabalho e remoendo o rancor de algumas memórias turvas, ele não o visita há mais de uma década e guarda poucas lembranças boas sobre a convivência entre eles. Por isso, quando recebe a notícia da morte do pai pelo telefone e se vê obrigado a viajar para Tottori, sua terra natal, para o velório, Yoichi não sabe muito bem como se sentir… nem o que esperar. Mas conversando com familiares e pessoas que o conheceram, ele aos poucos descobre um homem totalmente diferente do que se lembrava. À medida que rememora imagens de um incêndio que devastou a cidade, uma difícil separação, e a chegada de uma nova “mãe”, aquele que antes lhe parecera somente uma figura paterna ausente e fria começa a se tornar um personagem mais complexo.Essa HQ foi vencedora do Prêmio do Júri no Festival de Angoulême; considerada o Melhor Clássico no Festival Amadora, em Portugal; ganhou o prêmio Attilio Micheluzzi, na Itália; o Sproing, na Noruega; foi indicada ao Eisner como Melhor Publicação Estrangeira nos EUA e, na Espanha, venceu o Haxtur, a Feira Internacional de Quadrinhos de Madrid e o Salão Internacional de Quadrinhos de Barcelona.
♫ Playlist
Ne me quitte pas – Nina Simone
O Divã – Roberto Carlos
Noites Traiçoeiras – Pe. Marcelo Rossi
Tears in Heaven – Eric Clapton
Coração de Luto – Teixeirinha
The Scientist – Coldplay
Love In The Afternoon – Legião Urbana
Naquela Mesa – Nelson Gonçalves
Black – Pearl Jam
Vento No Litoral – Legião Urbana
Hurt – Johnny Cash
Canto Para a Minha Morte – Raul Seixas
Não tenho medo da morte – Gilberto Gil
Epitáfio – Titãs
Grief – Nick Cave
Death With Dignity – Sufjan Stevens
Like a Stone – Audioslave
Beloved – Mumford & Sons
Morte de um poeta – Alcione
Aonde Quer que eu Vá – Paralamas do Sucesso
The Scientist – Coldplay
American Pie – Don McLean
Link
Um documentário sobre o luto de pessoas que se suicidaram
A dor pela morte de uma pessoa amada, quando chega, não se parece nada com o que esperávamos. Não foi o que senti quando meus pais morreram: meu pai morreu quando faltavam poucos dias para seu aniversário de oitenta e cinco anos, e minha mãe um mês antes de completar noventa e um, ambos depois de vários anos de crescente debilidade. O que senti em ambas as ocasiões foi tristeza, solidão (a solidão do filho abandonado, qualquer que seja a idade), pesar pelo tempo perdido, pelas coisas não ditas, pela minha incapacidade de compartilhar ou até mesmo de admitir de forma real, no fim, a dor, a impotência e a humilhação física que ambos experimentaram. Eu entendia que a morte dos dois era inevitável. Tinha passado a vida esperando (temendo, antecipando, imaginando) aquelas mortes. Quando por fim chegaram, permaneceram a certa distância, separadas do cotidiano da minha vida. Depois da morte de minha mãe, recebi uma carta de um amigo de Chicago, um antigo sacerdote Maryknoll, que intuiu com precisão o que eu sentia. A morte de um dos progenitores, escreveu ele, “apesar de estarmos preparados e, na verdade, apesar de nossa idade, desloca coisas profundas em nós, desencadeia reações que nos surpreendem e que podem libertar memórias e sentimentos que julgávamos há muito esquecidos. No período indeterminado que chamamos de luto, é como se estivéssemos em um submarino, em silêncio sobre o leito do oceano, sentindo a carga da profundidade, ora perto ora longe, açoitados por recordações.”
O Ano do Pensamento Mágico – Joan Didion
Se alguém perguntar aonde foi Sokan diga apenas: “Tinha coisas a fazer no outro mundo”. Yamazaki Sokan |
Post com a colaboração de @laismeralda, que é a melhor cartomante do pedaço, marque sua consulta com ela.
Se você leu até aqui, obrigada! Esse é o meu almanaque particular. Um pedaço do meu diário, da minha arca da velha, um registro de pequenas efemérides, de coisas que quero guardar, do tempo, do vento, do céu e do cheiro da chuva. Os Vestígios do Dia, meus dias. Aqui só tem referências, pois é disso que sou feita.
© Nalua – Caderninho pessoal, bauzinho de trapos coloridos, nos morros de Minas Gerais. Primavera e muita gente estranha. |
3 de novembro é o 307.º dia do ano no calendário gregoriano (308.º em anos bissextos). Faltam 58 dias para acabar o ano.
Na verdade o nove de paus evidencia sentimentos de profunda inquietação senão de autoflagelação. As perdas sofridas ao longo de nossa caminhada, representam pedaços que nos foram subtraídos, entranhas desfiguradas. Ora, a longevidade pode e deve ser uma coisa boa pois ninguém quer morrer cedo (embora o cedo tenha uma conotação bastante subjetiva. A perda dos avós, pais, tios. primos e amigos principalmente nos causa sofrimentos e muita angústia, e a dor de uma subtração mortuária de uma pessoa a qual se dedica a vida, o coração a alma nos remete á indecente efemeridade da existência. Somos como uma frondosa árvore que aos poucos vai perdendo seus galhos, suas folhas e flores fenecendo a cada primavera. Cada morte de amigos ou parentes dos quais tenhamos tido qualquer afinidade, a nossa vida vai se arrefecendo de maneira sub-reptícia e nos remetemos a uma situação de profundo desprazer. Enquanto vivemos mais perdemos mais .Apenas a título de eventualidade, vejamos a perda de MARIA, MÃE DESESPERADA a contemplar o calvário de seu Amado Filho, Jesus , filho de suas entranhas, antes glorificadas pela Maternidade Divina, e ali petrificada em prol do sofrimento atroz de seu amado filho. Sua perda e sua dor não tem parâmetro no Universo. Nove de paus, horrível prognóstico .